ARACAJU/SE, 2 de dezembro de 2024 , 3:45:50

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Constitucionalismo senhorial

Um resumo brutal da ideia de Direito é o que o define como o que é permitido, proibido ou obrigatório em uma sociedade. Qualquer comportamento humano encaixado em uma dessas três possibilidades está no domínio jurídico: dos mais louváveis aos mais reprováveis. 

Uma constituição, por sua vez, é a lei que define como as outras podem ou devem ser. Assim, tal como uma correia de transmissão, qualquer virtude ou defeito de um sistema jurídico pode ser pesquisado no seu sistema constitucional, porque ali encontrará algum abrigo justificador. Se algo é permitido, proibido ou obrigatório será em última análise justificado nela.

O direito constitucional de um país organiza a tudo, para o bem e para o mal. Ainda que a concretização de suas diretrizes e conformações de suas regras e princípios fique a cargo da legislação comum, as virtudes e defeitos sociais estruturais de um país podem começar a ser analisados na respectiva constituição. Ela é quem tudo coordena – inclusive as injustiças gerais.

Essas rudes premissas ajudam a perceber duas ideias pouco trabalhadas nas discussões jurídicas brasileiras, mas nem por isso irrelevantes. Primeiro, que o regime constitucional brasileiro do Império, cujo bicentenário este ano se celebrou, foi o mais excludente e injusto dos que o Brasil já teve. Segundo, que suas sequelas, inclusive na mentalidade dos profissionais jurídicos, ainda são sentidas, embora nem sempre identificadas.

Esse sistema constitucional chancelava a escravidão. Nenhuma mácula pode ser maior para um ordenamento jurídico do que consentir que seres humanos tratem outros como coisas e possam dispor deles como hoje nem de animais se disporia com tamanha largueza de poderes.

Os livros de direito constitucional costumam referir a Constituição de 1824 por detalhes exóticos, contrastantes com as subsequentes. O Estado unitário: as províncias não tinham autonomia. A existência de uma religião oficial: o catolicismo, sob padroado imperial. O Poder Moderador: na pessoa do Imperador. O fato de não ser totalmente rígida: admitia para a maior parte de seus dispositivos mudanças por um processo legislativo menos rigoroso do que as emendas constitucionais. A longevidade: vigorou até 1889, quando a República foi proclamada e formalmente revogada em 1891. Os senadores vitalícios: eram escolhidos pelo Imperador em uma lista tríplice votada nas províncias. O voto censitário: exigência de certa renda para ser eleitor ou eleito etc.

O que pouco – ou nada – se diz nos manuais constitucionais é que toda a arquitetura dessa Constituição está conectada com a escravidão, base da economia nacional, pedra de toque do sistema social. Ela é voltada para que tal instituto fosse mantido. E, para esse objetivo, a Constituição foi redigida a partir de silêncios estratégicos e de umas poucas referências a elementos jurídicos igualmente angulares. Com essa matéria-prima, os juristas poderiam fazer o restante, nos processos de interpretação e aplicação, justificando a escravidão.

Uma obra recente abre os olhos de quem não havia percebido isso. No excelente “Assombros da Casa Grande – A Constituição de 1824 e as vidas póstumas da escravidão” (Fósforo, 2024), o professor Marcos Queiroz esclarece que o sistema constitucional de 1824 foi discutido, erigido e materializado sob o medo de que acontecesse no Brasil o que ocorrera no Haiti. A raramente lembrada Revolução Haitiana (1791-1804), promovida por negros escravizados e libertos, havia alcançado a independência do país e abolido a escravidão, estabelecendo a igualdade, ao preço de muito sangue. As elites dos demais países – brancas – temiam que o mesmo acontecesse dentro de suas fronteiras.

Seja no projeto da Constituinte de 1823, seja no texto final outorgado por Dom Pedro I, esse medo se fez sentir. Isso, apesar de a Constituição não usar a palavra escravidão, pois a proteção ao direito de propriedade “em toda a sua plenitude”, prevista no artigo 179, inciso XXII, era suficiente para que se supusesse a possibilidade de homens e mulheres serem donos e donas de outros homens e mulheres. 

Essa propriedade era garantida “em toda a sua plenitude” até quando não era permitida. Apesar de tanto Portugal, quanto o Brasil sucessivas vezes se comprometerem com a Inglaterra a encerrar o tráfico de escravizados (1818, 1826 e 1831), havia bastante tolerância à infração a essas regras, permitindo a chegada milhares deles ao país, sob a conivência das autoridades e o suporte dos juristas. Os intelectuais produziam interpretações de tolerância com a ilegalidade chapada. Mesmo após a Lei Eusébio de Queiroz, de 1850, que formalmente aboliu esse comércio hediondo, houve residual permissividade com o “contrabando” de escravizados, o que esvaziava a escassa proteção jurídica dos negros.

Dava-se, sempre que necessário, uma interpretação conveniente, que Marcos Queiroz chama de “hermenêutica senhorial”, validadora de arbitrariedades e privilégios. O sistema não existia para ter integridade, mas para proteger certas instituições, ainda que ao custo de distorções interpretativas. No sistema de 1824, usavam-se as estruturas estatais para validar a ilegalidade aberta, o contrabando de escravizados ou a negação de qualquer direito porventura positivado em favor deles. 

Arbítrio jurídico e exclusão estrutural: eis o que era reservado aos escravizados. A ideia de cidadania – chave do constitucionalismo, pois diz quem pode e não pode partilhar do poder -, era fixada pelo artigo 6º, inciso I, da Constituição Imperial, que dizia serem também cidadãos brasileiros os “libertos, nascidos no Brasil”. Ou seja: todos os escravizados não eram cidadãos. Todos os libertos nascidos no exterior (os que foram sequestrados e trazidos nos navios negreiros, portanto) também não eram. Assim, a ideia mesma de liberdade funcionava como filtro à participação política. A liberdade dos que nascessem no Brasil passava a ser, além de um perigo para a sustentação da economia, um risco para a organização política. Daí que devesse ser evitada, sob pena de se poder repetir aqui o ocorrido no Haiti.

Construía-se, assim, a “ideologia da alforria”: o sistema permitia que alguns negros fossem alforriados, desde que obedientes, submissos e dependentes do senhor. Isso ajudava a diminuir a pressão por revoltas. Por outro lado, só uns poucos conseguiam alcançar a liberdade. Isso impedia que tivessem representantes e, consequentemente, poder político significativo. 

Além disso, o sistema não admitia que libertos nascidos no Brasil votassem em outros como eles. O sistema era reforçado pelo artigo 94, inciso II, que excluía, expressamente, os libertos da possibilidade de serem eleitores (e, com maior razão, de serem elegíveis). 

Em 1871, essa trava passou a ter uma ameaça: a Lei do Ventre Livre. Os nascidos desde aquele momento não eram mais escravizados, mas livres de nascimento. Isso quer dizer que poderiam ser eleitores, preenchidos os requisitos censitários (de renda). Era difícil, mas era possível. 

Quando se cogitou que essa geração – na verdade, os que conseguiram se salvar das fraudes impostas à implementação dessa legislação – começaria a chegar à idade adulta, acrescida dos já libertos, o sistema percebeu a ameaça. Houve, não por coincidência, uma mudança relevante na arquitetura eleitoral: a Lei Saraiva, de 1881, veio a proibir o voto dos analfabetos. Com isso, dado o abandono educacional a que foram submetidos, os eleitores negros estavam, na prática, impedidos de participar, de novo, do processo político. E foi longo o hiato. Somente em 1985 os analfabetos, que incluíam muitos pobres e negros, puderam voltar a participar das eleições.

Muitos outros elementos jurídicos poderiam se somar aos mencionados para revelar como o direito imperial brasileiro era atroz e como os seus intérpretes eram perturbadoramente coniventes com atrocidades óbvias. Estranhamente, pouco de material reflexivo de grande alcance se usa nos cursos jurídicos a respeito. Um estudante de direito – e, por conseguinte, os profissionais jurídicos quase todos – não conhece, na faculdade, quase nada sobre isso. Jamais leu um parecer do Conselho de Estado sobre o assunto (desconhecendo, consequentemente, a tenebrosa manifestação sobre a Associação dos Congos, cujo pedido de existência foi negado porque o Conselho entendeu que uma coisa era autorizar uma associação de franceses ou italianos, outra, de congoleses. Racismo puro).

Nunca leu as opiniões de juristas justificando por que o contrabando de escravizados era legítimo, apresentado como uma necessidade econômica e até como um bem para os próprios africanos (mais bem cuidados pelos senhores do que nas “selvas” de onde vieram). Logo, pouco saberá sobre os contorcionismos usados por renomados doutrinadores para justificar os interesses que lhes cabia servir.

Um profissional do direito brasileiro bem instruído conhecerá julgamentos importantes dos Estados Unidos, como Dred Scott v. Sandford, Plessy v. Ferguson, Brown v. Board of Education, entre outros, amplamente citados nos livros de doutrina constitucional e até mesmo em filmes. No entanto, dificilmente saberá como os Saquaremas atuaram em prol da escravidão com a maior energia política de seu tempo, como o Poder Moderador foi mobilizado taticamente em favor dela e como o Conselho de Estado se aliou a um Senado vitalício, composto predominantemente por grandes senhores de escravos, para bloquear avanços que eventuais maiorias na Câmara dos Deputados poderiam propor.

Também não perceberá que essa dinâmica foi uma das razões pelas quais todos os juízes do país eram nomeados diretamente pelo Imperador (artigo 102, III). Não compreenderá como esses bloqueios fizeram o Brasil ser o último país das Américas a abolir a escravidão. E talvez nunca entenda como, não por acaso, um ano após a abolição, foi a própria monarquia que ruiu — já que não servia mais ao seu propósito fundamental.

Sem compreender esse contexto, é possível que esse profissional acredite que programas de renda mínima incentivem a ociosidade, que ações afirmativas para corrigir desigualdades históricas são desnecessárias e que a jornada de trabalho 6×1 é razoável.